domingo, agosto 28, 2011

Desafio: 08

Férias abençoadas! Pouco calor, pouca vontade de sair por aí, embora Santarém, Lisboa e Parque Natural do Alvão receberam a minha esperada visita. :)
Tempo de ler Dostoiévski - tinha medo de lhe pegar pelo tamanho, mas foi uma agradável surpresa a densidade e, ao mesmo tempo, a voluptuosidade da leitura dos dois romances maiores e a reflexão sugerida e despertada pelo Crime e Castigo, um monumento extraordinário -, de me encontrar com alguns livros de poesia africana (82, 92), de poesia portuguesa (86, 94), alguns clássicos (81, 84, 91, 93), com destaque para a beleza habitual de Raul Brandão.
Muitos filmes, pois claro, na tela, no computador, na televisão - o local cada vez menos me importa. Muitas surpresas boas e pequenas pérolas do cinema quase sempre mais recente, mas também de alguns com uma ou duas décadas em cima.
Bons tempos de traquilidade, caminhadas à noite, conversas inteligentes e estúpidas, batidos de amora, beijos aqui e ali, biblioteca mais arrumada, uma recensão e um artigo escritos (falta um, ainda... e mais uma comunicação - o trabalho não era prioridade, mas ambos em fase de redação). Sem muito Sol, daquele bom como gosto, mas também com um dia daquele tempo de tempestade que também adoro.
Para o ano há mais :)

livros:

81. Histórias Cor-de-Rosa, Ramalho Ortigão, JN, 80p.***
82. MITOgrafias, Arménio Vieira, Vega, 116p.*****
83. Guardador de Almas, Rui Vieira, Ambar, 128p.***(*)
84. As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão, Perspectivas & Realidades, 136p.*****
85. Montedemo, Hélia Correia, Ulmeiro, 56p.*****
86. Da Alma e dos Espíritos Animais, Rosa Alice Branco, Campo das Letras, 88p.****
87. Crime e Castigo, Dostoiévski, Público/Mil Folhas, 578p.*****
88. A Voz Subterrânea, Dostoiévski, Quasi, 128p.***
89. O Idiota, Dostoiévski, JN/DN, 610p.****
90. L’opéra de la lune, Jacques Prévert, La Guide du Livre, 48p.*****
91. Conto de Primavera Dinis e Isabel, António Patrício, Livraria Estante Editora, 128p.*****
92. O Osso Côncavo e outros poemas, Luís Carlos Patraquim, Caminho, 192p.***
93. A Ilha do Doutor Moreau, H. G. Wells, DN, 128p.*****
94. Poesia, Luiza Neto Jorge, Assírio & Alvim, 320p.****


filmes:

141. Jude, Michael Wintwebottom (recuperado)*****
142. The Bachelor, Gary Singor****
143. Carne, Gaspar Noé**
144. Tennessee, Aaron Woodley*****
145. Seven Pounds, Gabriele Muccino****(*)
146. Kaboom, Gregg Anaki***(*)
147. The Rite, Mikael Håfström***
148. Beastly, Daniel Barnz*****
149. Seconds Apart, Antonio Negret****
150. La Solitudine dei Numeri Primi, Saverio Costanzo***
151. The Fighter, David O. Russell***
152. Fading of The Cries, Brian A. Metcalf**
153. Rien à Déclarer, Dany Boom****(*)
154. Wrecked, Michael Greenspan***
155. Black Death, Christopher Smith****
156. I am Number Four, D. J. Caruso****(*)
157. Curtas de Animação - Óscares 2011*****
158. Scream of the Banshee, Steven C. Miller**(*)
159. The Adjustment Bureau, George Noefi*****
160. Hoodwinked Too! Hood vs. Evil, Mika Disa***(*)
161. The Lost Future, Mikael Salomon****
162. Source Code, Duncan Jones****
163. Ceremony, Max Winkler****(*)
164. No Strings Attached, Ivan Reitman****(*)
165. De Vrais Mensonges, Pierre Salvadori*****
166. The Clinic, James Rabbitts****(*)
167. Año Bisiesto, Michael Rowe****
168. Body of Lyes, Ridley Scott***
169. Legend of Guardians, Zack Snyder****(*)
170. Vanishing on 7th Street, Brad Anderson****
171. Life as we know it, Greg Berlauti****
172. Edges of the Lord, Yurek Bogayevicz*****
173. Snatch, Guy Ritchie*****
174. Robots, Chris Wedge e Carlos Saldanha*****
175. Super 8, J. J. Abrams****
176. Jane Eyre, Cary Fukunaga****(*)
177. Womb, Benedek Fliegauf*****

sábado, agosto 27, 2011

4 poemas de Luíza Neto Jorge




I
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas


******

O poema ensina a cair

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.


****

Nas cidades do sul
há violências e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.

Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.


*****

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.


Poesia, Luiza Neto Jorge, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 98, 141, 259, 283

segunda-feira, agosto 22, 2011

3 poemas de Arménio Vieira


A máquina do mundo de Os Lusíadas, por Almada Negreiros,
na fachada da FLUL

Graças dou por Luís Vaz,
Ele-Mesmo, varão audaz,
como Ulisses, nadatório,
ululado por ciclópicos
bêbados canibais.

Mas quem pode afogar
tal homem, decepar suas mãos,
liquefazer seu poema?

Se é verdade que o Novo Reino
sucumbiu à foice com que Deus
decepa a espiga ruim, também é certo
que a partir de um bla-bla ruidoso
com que Viriato, mais que a funda,
espantava os filhos de Eneias,
Luís Vaz, pegando nele, criou o poema
e a pátria que deveras conta.



****

Não há guarda-chuva, João,
contra quem não te ama,
já que o amor só se dá
quando alguém, como um rio,
se alonga e entra no mar,
o qual, embora líquido e salgado,
não é teu suor nem teu sangue.


****

Epopeias

Arma virumque cano... Deixemo-nos
de tretas! Versos destes escreviam-se
antigamente, quando Eneias e Ulisses,
em barquinhos de papel, arrancavam
olhos aos cíclopes, rindo nas barbas
de Neptuno, um rei de óculos e bengala
a precisar de viagra. Ezra Pound,
cow-boy e poeta, quis ressuscitá-los.
Pensando em quem? Mussolini via-se
bem que não. era um anão gorduchinho,
parecido aos que andam nos circos
a divertir a garotada. entre um bicho
assim e um homem chamado Aquiles
a distância é de uma légua.
Canto l'arme pietose e 'l capitano...
Deixemo-nos de tretas! Nós, a mor
das vezes, somos tigres a fazer figura
de urso. As armas e os barões...
Isso era antigamente, quando os Lusos
se riam à custa de Baco, rei sem
préstimo, bebedor de vinho.


Arménio Vieira, MITOgrafias, Lisboa: Vega, 2011:p.14, 22, 43.

quinta-feira, agosto 18, 2011

In this shirt


 THE IRREPRESSIBLES - «IN THIS SHIRT»

caidinho por esta canção, com uma letra tão bonita, uma voz tão fantástica, uma música tão extraordinária e um vídeo tão... artístico... (clicar para ver em grande, merece).



Adenda:

versão 'The Forgotten Circus'




versão de Michael CASSAN

 
 
 
 
versão Season 8 Top 20 

 
 
 
 
 
versão ao vivo, em Londres


nova adenda:



versão Röyksopp Remix

3 poemas de Luís Carlos Patraquim

Lendo Jorge de Sena

«Que tudo seja como outrora eu vi:
Uma figura ao longe recortada.»
Jorge de Sena, Sete Sonetos da Visão Perpétua

porque soberano Amor me ronda
e nos rios o ossário dos meses
em gestação é que vagueio
na ancorada nau das canções de Babel e Sião
hipótese da pedra com sílabas de colmo
e o vento por irmão

este é o campo das regadas areias
onde Heitor apodreceu
que uma sepultura em Creta acolherá
dos deuses o corpo que lhe morreu

não eu hausto na ilha errante
da entumecida voz à míngua
dos seminais lugares da esperança
e porque senão de angústia nos armamos
da exposta lança que é a língua
como se casa houvera desnudamos
extreme peregrinação nenhuma
de visão mais torturada
«uma figura ao longe recortada».


****

MUHÍPITI
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.


******

ISLÂNDIA

Uma variação insular

Cratera estranha, fria quanto baste
E húmida, uma secreção intumescendo
A haste da figueira e o figo único
Que a boca rasga;

Não é aqui a saga de Thor, nem a espada
De Tristão, flácida.
Dobra-se o herói de lava e, em rotação de si,
Abraça o fogo petrificado.
E teme o gelo à deriva no mar, as palavras
Brancas, o sal que escorre
- alguém disse: “da terra, de onde sois” –
seu corpo aberto em fissuras cósmicas
ou lucernário; Ele que se metamorfoseou
em relâmpago e breve sabia como derivam
no tempo os frutos e o seu esplendor;

O figo único que a palavra rasga.

Luis Carlos Patraquim, O Osso Côncavo e outros poemas, Lisboa: Caminho, 2004, p.50, 93-4, 130


quarta-feira, agosto 10, 2011

3 poemas de Rosa Alice Branco



Natureza Morta com Chaminé

Vejo o fumo a sair pela chaminé e um pouco acima
as folhas da árvore tremulam. Ainda resistem,
as árvores têm um fôlego extraordinário. É o meu amigo
que vai subindo e eu aqui em baixo troco recordações avulsas
com dois rapazes do nosso tempo. Lá dentro há uma sala de espera
mas aqui também eu vou fumando a minha vida.
Em Auschwitz não havia sala de espera não havia cadeiras
para a família, nem árvores suficientes para soletrar a dor
nas suas folhas. O meu amigo vai saindo pela chaminé
e eu não sei se as nossas brigas ficam nas cinzas e onde são
guardados os afectos. Este ruído da pá que fere os ouvidos junta
tudo o que poderemos visitar num guarda-jóias para bijuteria.
A verdade que nos resta já vai alta. Só a árvore sabe nas folhas
a corporeidade da matéria que se evola. Aqui em baixo eu fumo.
Directo ao céu vai o corpo do meu amigo subindo pela chaminé.

***



Atrás dos Dias

Atravessas as ruas e o meu olhar anda
à volta do teu corpo e quando vais à escola
passo perto dos teus pés, das pernas nuas.
À tarde nos passeios apinhados de gente
não sei onde estou mas trago leite nas mãos
e o mel desce sobre a fome que pudesses ter
para que rias, a tua boca se transforme em trigo
e os teus olhos em luz. Brincas com um amigo,
eu arranco os pregos da madeira, amacio o chão
em que tropeças. Fazes os deveres, ensino
os números a obedecerem-te e a amares
as letras umas ao lado das outras, solidárias
como uma pequena vírgula para que o silêncio
receba a tua voz. Voo junto às tuas asas,
lubrifico-as e fico a ver como se suavizam
os traços do teu rosto. Agora vais partir.
Irei um pouco atrás com a cor da tarde
para não ser vista. Por mais que vás
estarei de mansinho atrás das asas. Ser mãe
é ir assim. É assim que vou à fonte.


****

Desmantelar Certezas

Agora é difícil mentir, acreditar
que as palavras possam não arder.
Foram demasiados incêndios
que passaram de século a século.
Vê como se assemelham os seus rostos,
o rasto de fuligem que os desfigura
é um cometa fugidio, mas nós sabemos
que algumas palavras passaram através do fogo,
mais magras do que os corpos, mais dúplices,
cheias de sentidos cobrindo mil cores
e mais mil ainda por abrir. Quantas vezes
a serva escolheu a quem servir?
E no chão sempre o mesmo sangue,
sempre os mesmos olhos a desmantelar
certezas. Já não podemos acreditar
que as palavras não desfiguram corpos,
não ateiam. É tarde e as palavras que nos vestem
estão cansadas. É tarde desde Abel,
desde o paraíso. E neste fim de tarde
alguém, em qualquer parte, escreve uma palavra
que ainda não foi escrita, uma palavra leve
ferindo os temporais e embora seja tarde
é também cedo e o amanhã começa
com esta palavra a caminho do seu pó.

Rosa Alice Branco, Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto: Campo das Letras, 2001: p.
26, 49, 80.

sábado, agosto 06, 2011

5 poemas de Justo Jorge Padrón





Não sei por quanto tempo

Não sei por quanto tempo seguirei
nesta inútil sucessão de instantes.
Caminho pelas ruas com a morte à espreita.
Ainda que o meu coração o peito pise
e o corpo obedeça
às vezes do azar ou ao instinto,
ainda que sinta qua ainda posso ocupar
um trabalho nas máquinas,
um lugar entre os vivos,
eu já não me pertenço.
Olho o horizonte
e nada me devolve a inquietude aos olhos.
Onde estará aquele fogo feliz?
Já nada tenho e a vida não acaba.
Vou escutando o lento desagregar,
o processo invisível até à ruína.

***

Nova primavera

Com um novo esplendor indeciso e ardente
e uma silvestre exactidão de aromas
chegou a primavera.
Chegou como se jamais pudesse ir-se
e se se julgasse jovem para sempre.
Vi-a instalar-se junto da minha janela,
derramando clamor de pássaros e um sol indecifrável
que estalava no ar as cores.
toda a aura letal do longo inverno
se anulou diante do singelo furor
e da graça sem limites da sua primeira flor.

****


Sapatos para um deus grego

E brindei pelo deus grego e pelos seus pés descalços,
e entre o espesso aroma daquele vinho
e da alada loucura do instante,
para acalmar com o couro os seus belos pés de brisa,
abandonei na sombra os meus sapatos.

A noite abriu a porta e na mansão
ouviram.se comovidos os seus passos de silêncio.
O vento vestiu-se com folhas de penumbra
e bebendo na minha taça passou beijando as frontes.
Os nossos olhos criaram uma estrela
que cruzava a obscuridade e as distâncias.

Nunca mais soube daquele par de sapatos.

*****


Texto para um Anjo

Uma vez escrevi um texto para um anjo.
Um poema invisível semelhante às suas asas.
Ignoro ainda quem voará melhor.
Não sei em que ocasiões me recorda
a por vezes, quando durmo, deposita nos meus lábios
polpa de melão níveo ou solta no meu ouvido
ondulantes arpejos que jamais escutei,
ou sussurra palavras trémulas e remotas
que me abrem com as suas chaves as janelas da água,
enfaroladas luzes de um país atrás das suas sombras.
Com segurança conduz-me pela sua cósmica mão
por todos os espaços que sonharam os livros,
e ao mesmo tempo sou a juventude
e os olhos de tudo o que vive
no pulsar fraterno da brisa.
Sinto o calafrio das flores amando-se,
o pranto de uma estrela afundada num charco.
O meu poema invisível é o meu segredo
e ainda que agora o anuncie e o partilhe,
ele, com as suas asas diáfanas, num traço de luz
porá nos vossos sorrisos o esquecimento.

******


Voo em Chamas

Sobre o resplandecente milagre da orquídea
uma azul borboleta ergue as suas asas.
Por um instante duvido se são ondas ou pétalas,
ou se é a luz a nova flor que se abre
na aparência trémula do voo detido.
Permanece o silêncio olhando fixamente
a vertigem incendiada do espaço,
a irisação suprema, o luxo do unânime.
Uma gota de orvalho golpeia a corola.
A súbita centelha sobressalta
a comovida flor e em espiral ressurge
o voo em chamas de uma luz celeste,
enquanto os olhos torpes se perguntam
onde amanhecerá a borboleta.


Justo Jorge Padrón, Obra Poética 1966-1996, Sintra: Tertúlia, 1998: p. 255, 285, 397, 529, 769